sábado, 26 de abril de 2008

Pra frente Brasil - Dia 10/05


Da memória da alegria


Gerson Fraga

Quarta-feira, 26 de março. Depois de uma tarde de aulas, tentando discutir historiografia sem que os alunos tenham lido o texto indicado, chego em casa e me deparo com uma mensagem do amigo Quinsani. Nele, uma proposta: redigir um breve texto sobre a Copa do Mundo de 1970 para este espaço, a fim de relacionar sua leitura com o filme “Pra Frente Brasil”. Proposta aceita.
Quinta-feira, 27 de março. Chego na universidade e a Tatiana, que tudo sabe do mundo das telas e da bola, vem correndo me emprestar uma relíquia de família: uma Revista Manchete, de 20 de junho de 1970. Na capa, Jairzinho dribla dois ingleses sob o olhar atento de Pelé, que, semi-encoberto, acompanha a jogada ao longe. Dentro da revista, 28 páginas são dedicadas às vitórias sobre ingleses e tchecoslovacos (ainda era uma coisa só naquele tempo). Sobre a situação política, quase nada, apenas uma entrevista do Chico Buarque, e ainda assim tudo muito nas entrelinhas (Obrigado Tati, te devo mais essa!).
Segunda-feira, 31 de março. Atendendo a um generoso convite de outro aluno, que fora das aulas trabalha como radialista (Valeu Fabiano!), passo o turno da manhã na Rádio da Universidade debatendo, com testemunhas oculares do golpe cívico-militar, seus 44 anos, sempre relembrados, mas nunca comemorados neste dia.
Nesta tarde, sentado diante do papel e da caneta, pensando em uma forma de saldar minha dívida com o amigo Quinsani, começo a me questionar sobre os motivos que fazem com que estes dois assuntos – a Copa do Mundo de 1970 e a ditadura – sejam tão relacionados em nosso subconsciente. É claro que há uma sobreposição temporal entre os piores dias do regime e os melhores dias de Pelé, Rivelino e Cia., assim como é de conhecimento público a utilização do tri-campeonato pelo escrete do Médici. Mas daí a imaginar uma corrente elétrica passando pelo corpo de alguém a cada vez que revemos o Carlos Alberto liquidando com a Itália deveria haver uma certa distância. Deveria.
O problema é que o regime militar não avacalhou apenas com a História do país, com sua economia, com sua política, com a educação que formou a todos nós. Ele conseguiu avacalhar também com uma parte muito importante de nossa memória. Com razão, aquilo que era para ficar em nossa lembrança coletiva como um dos momentos mais iluminados da brasilidade, ao qual o próprio Hobsbawm atribui a condição de arte, acabou, por obra e graça do time verde-oliva-azul-branco e engravatado, associado ao que de mais obscuro temos no século XX. É como uma moeda: sabemos que o lado da alegria é oposto ao lado da infâmia e, infelizmente, ambos formam o mesmo conjunto dentro da memória nacional. É claro que deve haver quem diga que dissocie uma coisa da outra, mas convenhamos que isto é o mesmo que comer brioches ignorando a presença da guilhotina nas ruas de Paris.
Assim como todas as outras perdas do período, também esta é irreparável. Roubaram-nos não a alegria (afinal, esta em alguma medida houve, e tem o péssimo hábito da resistência), mas roubaram-nos a melhor parte da alegria: a pureza de sua lembrança, de poder saber que por um dia fomos felizes como crianças. Gostaríamos de lembrar do tri-campeonato por ele próprio, por ser motivo de felicidade, orgulho e ponto final. Mas não podemos. Por detrás da foto dos onze craques, já meio amarelada, há uma sombra de urubu a nos lembrar que nem tudo naqueles dias era felicidade; ao contrário, tivemos apenas um momento de felicidade em meio a um turbilhão de dor, agruras e incertezas.
Por isto que todos nós, amantes do futebol, deveríamos pleitear o julgamento de mais este crime: queremos o reconhecimento de que nossa sagrada felicidade futebolística – também esta – foi maculada pelo uso que dela fizeram os governos militares, bem como pelos seus atos durante aquele período. Macular desta forma a conquista máxima de nosso maior símbolo de brasilidade foi um crime de lesa-pátria, um crime contra nossa memória, e, como todos os outros, é indigno de perdão ou anistia.

Rio Grande, 31 de março de 2008.

Um comentário:

Anônimo disse...

Espero que dessa vez os homens altos sentem no fundo da platéia...