domingo, 6 de abril de 2008

Da intensidade do evento

Da intensidade do evento
Nilza Silva

Se evento é o que acontece à matéria, cada evento ganha importância ao escapar do estado de coisas que lhe dá carne, para insistir sobre outros corpos. Deste modo, foge à própria marca histórica das ações e das paixões pontuais e contamina o mundo. Ao se disseminar, produz fecundações insuspeitáveis. Torna-se intempestivo.
Os eventos de 1968, em Bélgica, Alemanha, França, Espanha, Itália, Tunísia, Venezuela, Polônia, Brasil, Estados Unidos, Tchecoslováquia (atual República Tcheca), Iugoslávia (atuais Sérvia e Montenegro), Argentina, Uruguai, Colômbia, México, emergem de longa marcha e seguem adiante. Empurram a pensar e a agir. Queira-se ou não.
As mutações em curso – operadas dentro dos mais diversos conteúdos e matizes – oferecem resistência à voracidade do capitalismo, do colonialismo e do imperialismo, à burocratização do socialismo e às coações instituídas nas relações de forças cotidianas. Elas dão vigor a um processo mais do que anunciam resultados.
Quatro intelectuais – cada um a seu modo – se fazem contaminar por esses eventos. Cada um expressa sua intercessão nos embates travados.
Gilles Deleuze (1925-1995), docente da Sorbonne, participa do Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), que trabalha para dar voz aos detentos, em prisões francesas. Em 1990, escreve:

“Uma espécie de passagem à política, eu a fiz por minha conta, com maio de 68, à medida em que eu tomava contato com problemas precisos, graças a Guattari, graças a Foucault, graças a Elie Sambar”.

“Maio de 68 foi a manifestação, a irrupção de um devir em estado puro. Hoje, a moda é denunciar os horrores da revolução. (...) Diz-se que as revoluções têm um mau porvir. Mas não se cessa de misturar duas coisas, o porvir das revoluções dentro da história e o devir revolucionário das gentes. Não são mesmo as mesmas gentes nos dois casos. A única chance dos homens está no devir revolucionário, que pode só conjurar a vergonha ou responder ao intolerável”.[1]

Félix Guattari (1930-1992), na França, participa da luta antimanicomial e de grupos de pesquisas institucionais, que se ocupam de construir micropolíticas propulsoras de autogestão. Em 1986, declara:

“Às vésperas de 68, eu tinha o sentimento de estar sobre uma vaga portentosa, de fazer surf, articulando toda sorte de vetores de inteligência coletiva. Ruptura com ‘A via comunista’, com um estilo militante um pouco dogmático, um pouco atrasado...”.

“Para mim, o pós-68 eram os comitês de ação, a alternativa à psiquiatria, os movimentos femininos, o movimento homossexual... Eu esperava que se ia prosseguir uma elaboração coletiva, mas se colocou a reinar uma espécie de interdição de pensar”.[2]

Michel Foucault (1926-1984), docente de Nanterre, luta em defesa dos estudantes presos em manifestações, na Tunísia. Na França, participa de manifestações e assembléias na Sorbonne e do Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP). Em entrevista, em 1978, diz:

“Eu vivi num país do terceiro mundo, na Tunísia, durante dois anos e meio. Uma experiência impressionante: um pouco antes do mês de maio na França, se produziu lá revoltas estudantis muito intensas. Estava-se em março de 1968: greves, interrupções de cursos, prisões e greve geral dos estudantes. A polícia entrou na Universidade, caceteou numerosos estudantes, feriu gravemente vários dentre eles e os jogou na prisão. Alguns foram condenados a oito, dez e mesmo quatorze anos de prisão”.

“Eu fui profundamente impressionado por estas moças e estes moços que se expunham a riscos formidáveis, redigindo um folheto, distribuindo-o ou apelando à greve. Foi para mim, uma verdadeira experiência política”.

“É certo que, sem maio de 1968, jamais eu teria feito o que eu fiz, a propósito da prisão, da delinqüência, da sexualidade”.

“Eu ensaiei fazer coisas que implicam um engajamento pessoal, físico e real, e que poriam os problemas em termos concretos, precisos, definidos no interior de uma situação dada”.

“Pareceu-me que um novo tipo de reportações e de trabalho comum, diferente do passado, entre intelectuais e não intelectuais, era, doravante, possível”.[3]

Maurice Blanchot (1907-2003) participa de manifestações na Sorbonne, ao lado de Michel Foucault. Em 1986, escreve:

“O que quer que digam os detratores de maio, este foi um belo momento, quando cada um podia falar ao outro, anônimo, impessoal, homem dentre os homens, acolhido sem outra justificação senão de ser um outro homem”.[4]

E assim, embutido na duração do mundo, o ano de 1968, ele próprio tornado evento, subsiste.

Nilza Silva, 57, psicóloga.

Abril de 2008.

[1] DELEUZE, Gilles. Pourparlers. Paris: Les Éditions de Minuit, 1997, capítulo V, p. 230 e p. 231.
[2] GUATTARI, Félix. Les années d’hiver. 1980-1985. Paris: Bernard Barrault, 1986, capítulo I, p. 84 e p. 84-85.
[3] FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. 1954-1988. Paris: Gallimard, 1994, tomo IV, p. 78, p. 80 e p. 81.
[4] BLANCHOT, Maurice. Michel Foucault tel que je l’imagine. Paris: Fata Morgana, p. 9-10.

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